
O Dia Nacional do Samba, celebrado anualmente em 2 de dezembro, homenageia um dos pilares da cultura brasileira e convida a refletir sobre o espaço que o gênero ocupa hoje no país. Em 2025, a data coincide com os 30 anos do polêmico Réveillon de 1995, quando Paulinho da Viola, único sambista convidado para se apresentar em Copacabana (RJ), recebeu um cachê muito inferior ao dos demais artistas.
Enquanto nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Milton Nascimento e Chico Buarque ganharam R$ 100 mil pelas participações no Tributo a Tom Jobim, Paulinho recebeu apenas R$ 30 mil.
O episódio, lembrado no livro Projeto Querino: um Olhar Afrocentrado Sobre a História do Brasil, de Tiago Rogero, ficou marcado como um caso emblemático de preconceito contra o samba. Rogero relata que uma das organizadoras chegou a culpar o próprio artista pelo cachê baixo, sugerindo que sua estrutura de trabalho era menos profissional que a dos demais músicos. Para quem acompanhou a época, a situação explicitou a desvalorização sistemática do gênero e de seus representantes.
Três décadas depois, o Metrópoles analisou dados oficiais das maiores festas públicas de Réveillon do país — Salvador, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro — para entender se o cenário mudou. A amostragem, baseada em informações publicadas nos Diários Oficiais entre 2022 e 2024, mostra que o samba segue ausente das curadorias governamentais em boa parte do Brasil.
Em Salvador, apenas três das 83 atrações dos últimos três Réveillons eram do samba. Em Brasília, o gênero não aparece desde 2022, quando o Fundo de Quintal se apresentou — no período analisado, apenas uma das 13 atrações era do samba. Em São Paulo, o panorama é semelhante: nas festas da Avenida Paulista, apenas três das 21 atrações contratadas representavam o gênero, todas escolas de samba.
Para o professor e crítico cultural Acauam Oliveira, a explicação é histórica, racial e estrutural. “O projeto das elites brancas sempre foi eliminar e expulsar os negros das esferas de produção de cultura e de conhecimento. O que se observa é um projeto deliberado de marginalização dos produtores de arte negra”, afirma.
O único contraponto aparece no Rio de Janeiro, onde o samba ocupa um lugar orgânico na vida cultural. Entre 2022 e 2024, 18 das 21 atrações do Réveillon carioca eram do gênero. Segundo Oliveira, isso ocorre porque a cidade respira samba — algo que não se repete em outras regiões. “Em várias cidades, o samba não faz parte do cotidiano. Esse também é um elemento, além da questão racial, que ajuda a explicar a diferença de valorização.”
Cachês desiguais
A presença tímida do samba fora do Rio não é o único problema. O tratamento financeiro dado aos sambistas também demonstra desigualdade.
Em São Paulo, por exemplo, as escolas de samba receberam cachês muito inferiores aos artistas principais dos eventos. Em 2022, a Mancha Verde ganhou R$ 30 mil — 23 vezes menos que Leonardo, atração de R$ 700 mil. Em 2023, a Mocidade Alegre recebeu R$ 22 mil, enquanto Chitãozinho e Xororó receberam R$ 797 mil. Em 2024, a diferença se repetiu: R$ 38 mil para a Mocidade Alegre, contra R$ 1,1 milhão para Bruno & Marrone.
Para o historiador Luiz Antonio Simas, embora o samba tenha sido valorizado como gênero ao longo do tempo, o sambista continua subestimado mercadologicamente.
“A legitimação do gênero musical não correspondeu à legitimação do artista”, diz. Ele ressalta que o samba é construído majoritariamente por populações que historicamente sofreram maior precarização no Brasil, o que influencia diretamente a negociação dos cachês. “O sambista, em geral, vai negociar valores que não estarão à altura dos cachês milionários pagos para artistas de outros gêneros.”
“Projeto nacional de desvalorização”
Quando os sambistas finalmente recebem valores maiores, surgem questionamentos públicos e políticos. Foi assim em 2014, quando Seu Jorge recebeu R$ 700 mil para se apresentar no Réveillon de Copacabana, valor que gerou incômodo nos bastidores. Em 2015, a contratação de Zeca Pagodinho por R$ 800 mil levou a oposição na Câmara Municipal a pedir justificativas formais. Em 2017, Alcione foi alvo de críticas e até de investigação do Tribunal de Contas do Distrito Federal por receber R$ 300 mil em Brasília.
Para Acauam Oliveira, isso evidencia um projeto nacional de desvalorização. “Estamos diante de uma elite profundamente predatória, que transformou a cultura brasileira em um grande latifúndio musical, controlado por interesses privados articulados ao agronegócio.”
Simas concorda e acrescenta que a disputa simbólica também pesa. “Há uma desqualificação que opera sobre a herança afro-brasileira. O avanço do agronegócio nesses grandes eventos, como o Réveillon, desloca espaços que antes pertenciam ao samba.”
Mesmo diante das barreiras institucionais, o gênero segue vivo e pulsante. O samba passa por um momento de expansão, com novas rodas, projetos comunitários e artistas que se voltam novamente às raízes. O Dia do Samba, instituído pela Lei nº 554 em 1964, segue como lembrança anual da força do estilo que molda identidades e sociabilidades Brasil afora — ainda que a festa oficial não o celebre como deveria.
Para Simas, o samba não depende dos grandes palcos para existir. “A cultura do evento muitas vezes é rasa. Mas o samba é o evento da cultura. É uma maneira de se posicionar na vida, de construir identidade e proteção social. O sambista é um construtor do que há de melhor no processo civilizatório brasileiro”, conclui.
Source link
https://jornalismodigitaldf.com.br/genero-ainda-enfrenta-disparidade-de-espaco-e-caches-no-reveillon/?fsp_sid=234423





0 #type=(blogger):
Postar um comentário